segunda-feira, 4 de julho de 2011

Casa (Ana Jácomo)


Não faz muito tempo, uma amiga me disse que não tem estrutura para sentir dor com a intensidade com que geralmente sinto quando a dor resolve dar as caras. Ao escutar o barulho da porta que anuncia a chegada da dita-cuja, que sabe jeitos de abrir todo tipo de tranca, ela foge, contou-me rindo da costumeira estratégia. Irmanada também pelas artimanhas que inventamos pelo caminho, às vezes apenas para sobreviver às ameaças dos nossos próprios dramas, eu lhe perguntei como poderia escapar se a dor, ardilosa, espaçosa, já estava dentro de casa.

“Ah, querida, mas tem a porta dos fundos!...”

Tem mesmo.

Rindo ali com ela, cada uma experimentando a própria encrenca emocional da vez, com o roteiro da vez, com o cenário da vez, com o elenco da vez, eu me lembrei de um monte de situações em que tentei fugir da mesma maneira, pela porta dos fundos. Eu me lembrei de vezes em que, de fato, fugi, toda prosa por acreditar ter conseguido. Eu me lembrei que fugir, às vezes, é necessário para recuperar o fôlego. Para restaurar a força. Para retomar o contato.

Não é que eu tenha estrutura para sentir dor. A propósito, eu acredito que bravura mesmo é ter estrutura para sentir felicidade. Na verdade, toda vez que as dores abissais me visitam e mergulho no oceano nada pacífico do seu breu é trabalhoso demais emergir para o lugar onde eu já consiga ver pelo menos um bocadinho de sol. Na verdade, o que eu acho é que não tenho escolha que não seja invocar a coragem para ficar comigo e tentar transformar o que precisa ser transformado, mesmo doendo à beça, mesmo tremendo de medo. Aprendi com o tempo das fugas que quando a dor atravessa a porta é inútil correr. Na verdade, o que eu tenho, agora, simplesmente por memória, é alguma lucidez e um bocado de preguiça.

Toda porta dos fundos nos leva para um lugar fora da gente. Uma hora, mais cedo ou mais tarde, querendo ou não querendo, fazendo birra, tentando desconversar, precisamos voltar pra casa se não quisermos passar o resto da vida longe de nós mesmos. E aí tanto faz por qual porta nós voltamos, se pela da frente, se pela dos fundos: a dor está lá, empoeirada que seja. Cheirando a mofo, quem sabe. Esta lá, com uma cara ou com outras, paciente, a nossa espera. E maior, bem maior, que fuga costuma ser fermento. Ela não vai embora só porque a gente fugiu. Quem dera pudesse.

Aprendi com o tempo das fugas e com o resultado de cada uma delas que podemos adiar o encontro do nosso olhar com os olhos perturbadores da dor, mas não tem jeito: em algum quarteirão da vida, eles vão se encontrar. Por isso, agora, toda vez que acontece, escolho ficar em casa. Escolho encarar de uma vez. Mergulho inteirinha, protegida com o escafandro da fé e do amor que me habitam.

Dor adiada é dor acumulada, apenas isso, é o que aprendi comigo. É o que aprendi com as dores. E a vida é tão mágica que, lá no fundo mais fundo do oceano nada pacífico de cada uma delas, lá no instante ou quase em que a pilha da lanterna acaba, a gente descobre um jeito novo, muito lindo, muito nosso, comovente muitas vezes, para conseguir emergir e transformar o que parecia impossível de transformação. E não é exagero dizer que geralmente emergimos mais corajosos. Mais ternos. Mais bondosos. Mais nós mesmos. Mais conscientes do que, de verdade, nos importa. Com mais urgência de nos sentirmos felizes na nossa própria pele.

No fundo mais fundo, não é raro nos sentirmos sozinhos. Estamos doendo tanto que, pra começo de conversa, a nossa própria presença nos falta, isto que é a mais perigosa solidão. Mas é um engano temporário, comum nos tempos em que os nossos olhos estão embaçados demais pelo medo: tanto faz o aparente e transitório tamanho da solidão, não estamos sozinhos nunca. E não estamos mesmo.

O amor, não importa de que forma se manifeste, encontrará maneiras para nos tirar lá desse lugar com recursos às vezes inimagináveis. Podemos estar tão cansados pelo breu que não conseguimos perceber num primeiro momento, nem num oitavo, nem num trigésimo, o convite da luz. Mas, de um jeito ou de outro, o amor que nos habita não cansará de tentar. Ele não foge pela porta dos fundos.

JÁCOMO, Ana. In: Cheiro de flor quando ri

5 comentários:

  1. Bele, que lindo texto... Eu me emociono com a sua escrita, tão leve e bonita, até quando fala das coisas difíceis da vida, que tem sempre a ver com sentir alguma dor. Me lembrei de um conto do Rubem Alves, chamado O Anestesista - se puder, leia, acho que você vai gostar. Um beijo, fico feliz que tenha voltado! Lu

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  2. um texto que entra em contato com o que penso e sinto... precisamos da dor, não pelo efeito destruidor, mas para que a partir desta consigamos diferencia-la da FELICIDADE

    beijos,
    do menino

    fique com Deus!

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  3. Há muitas portas na alma,
    quase todas fechadas.

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  4. O blog “É O MENINO HOMEM?” vai comemorar o 3º aniversário e convidado especial é VOCÊ! Convido-te a participar do Blogagem Coletiva: “MINHAS PRIMEIRAS LEITURAS”, que acontecerá neste domingo (17 de Julho), com a intenção de promover um interessante diálogo sobre as iniciais experiências no universo encantado das palavras... Não deixe de conferir e rememorar momentos tão inesquecíveis! Confirme sua presença no meu blog e veja o regulamento para a postagem.

    Um beijo,
    do MENINO-HOMEM

    Fique com Deus!

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  5. Oi! Que lindo, seu blog. Também gosto de escrever algumas coisinhas, de vez em quando - só ainda não tenho quem me leia. Vc pode me seguir? Obrigado.

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