segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Princesa

(Por Eliane Brum)

Olha estes ingleses, que otários!, esbraveja minha amiga no balcão da padaria, onde tomamos nosso café da manhã. O que eles fizeram agora, forjaram armas químicas no Irã?, pergunto eu, abocanhando um pão na chapa. Não, este casamento do príncipe William com a tal da Kate Middleton. Em pleno século XXI e os britânicos param tudo para acompanhar o noivado do príncipe. Que bulchite!

Eu foco na foto do príncipe William estampada na capa do jornal de quarta, reparo que ele começa a ficar careca, divago um pouco sobre o vestido da Kate e… irrito minha amiga. Não acredito que você se interesse por este tipo de notícia! Uai, digo eu, em versão mineira, mas foi você que me mostrou! O bom de viver em São Paulo é que a gente pode ser qualquer coisa.

Minha amiga está revoltada. É sério, agora percebo, o noivado do príncipe a incomoda de verdade. Ela é a imagem da paulistana cool. Já lavou pratos em Londres, fez curso de cinema em Nova York, andou meditando na Índia muito antes da Elizabeth Gilbert e agora alterna o trabalho de produtora de moda numa revista modernete com um interminável mestrado sobre o feminino em Virginia Woolf e Katherine Mansfield. Tem uma vida amorosa mais movimentada do que consigo acompanhar e nosso café periódico tem em parte a função de me atualizar nesta área. Minha amiga também tem razoável senso de humor e, a esta altura, ela já deveria ter feito alguma piada com absorventes íntimos.

Você está realmente incomodada, digo eu, quase engasgando com o capuccino. Estou, claro que estou. Mas por que, criatura?, digo eu. Eu achava que o Príncipe Charles tinha feito um ótimo serviço ao acabar com a hipocrisia dos contos de fadas quando preferiu a mocreia em vez da princesa e agora isso. Mais um casamento do século. Você não achava que um príncipe tampax acabaria com os contos de fadas, achava?, tento eu. Achava, claro que eu achava, diz ela. A princesa do bem estragando a maquiagem na TV porque o príncipe consorte a chifrava com a irmã baranga da Cinderela e não deveria ser o suficiente? Não deveria ter ensinado alguma coisa àquele povo? Cristina! (Quando ela me chama pelo nome é porque as tropas estão se preparando para desembarcar na Normandia.) Eles estudam em bons colégios, comem bem, têm acesso a museus e bibliotecas, eles não têm o direito de ser tão estúpidos! Quase engasgo. E o que a inteligência e a boa alimentação têm a ver com isso?, protesto.

Situações como esta, na minha opinião, exigem medidas drásticas. Peço uma coxa-creme e uma coca normal. Hello!, agarro o rosto dela entre as mãos e descubro que tenho açúcar na ponta dos dedos. Nem você quer que a monarquia britânica acabe! E quando o casamento de contos de fadas entrar em crise como todo casamento, você pode imaginar que gozo o inglês médio terá? Você quer que eles percam tudo isso — e nós também? E nem é tão ruim assim, já que a tal da Kate não tem nem uma única hemaciazinha azul. Imagina, os pais têm uma empresa de lembrancinhas de aniversário. A mãe era aeromoça, o pai controlador de vôo. E agora ela vai caçar veados com o príncipe Phillip. Não é quase genial de tão prosaico?

Minha amiga faz uma cara esquisita. Meu deus, ela vai chorar. Uma lágrima faz uma curva no piercing do nariz. O que você tem? É TPM? Ela me dá um safanão. Ah, não, você é mulher, não tem direito de vir com esta história de TPM só porque estou chorando. Não, claro que não, digo eu. É perfeitamente normal você estar soluçando às nove horas da manhã no balcão da padaria por causa do casamento do Príncipe William. Do Príncipe William!!!

Agora ela se abraça em mim e baba toda minha camiseta da Branca de Neve. Me diz o que você tem, por favor. Eu tenho vergonha, ela quase assoa o nariz na gravata do cara ao lado. A padaria inteira olha para nós. Ainda bem que me lembrei de colocar óculos escuros. O Adão, que sempre nos serve, pergunta se queremos água com açúcar. Acho lindo ele perguntar isso. Imagina, água com açúcar. Quase choro por amor ao Adão.

Você precisa me dizer o que você tem, eu insisto. Eu estou preocupada. Até o taxista ali na porta está preocupado. Por favor! Ela me olha, fungando. Eu tenho vergonha. Você vai me crucificar. Você nem vai querer mais tomar café comigo. Nunca mais vai me convidar para a mostra de cinema. E vai vender o meu ingresso para o show do Paul McCartney. Juro que não. Eu te amo, você sabe. Pode me dizer qualquer coisa que eu vou escutar. Até a mosca que mora na torta de limão parou de zumbir para ouvir melhor.

Minha amiga diz, voz embargada: Eu acho que eu queria ser princesa. E desanda a soluçar mais uma vez. Você queria o quê?, eu realmente escuto mas não escuto. EU QUERIA SER PRINCESA! EU QUERIA SER A KATE MIDDLETON!! ENTENDE?! SE UMA PLEBEIA PODE SER PRINCESA, ERA EU QUE QUERIA TER AQUELA SAFIRA COM 14 DIAMANTES NO DEDO!!!

Eu não sabia bem o que fazer. O que eu digo agora? Duas garotas de uns 17 anos, cabelos escorridos, se aproximam e botam a mão no ombro da minha amiga: Tia, não chora. É normal. A gente também quer ser vampira e casar com o Robert Pattinson.

Adão!!!!! , eu grito. Mais uma coxa-creme e dois pastel! E um sapo, por favor, um sapo.


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quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Quem paga a conta?

É isso aí meu irmão

Você que nem sentou-se à mesa

Você que nunca comeu a sobremesa

Que sempre roeu o osso

Que sempre serviu

Que nunca pediu

É você mesmo

Que vai pagar a conta.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Monteiro Lobato no banco dos réus

Por Ediney Santana.

Monteiro Lobato foi preso por Getúlio Vargas, foram muitas as acusações: representava um perigo para a nação, suas histórias infantis acusadas de serem comunismo para crianças, ter criado a primeira empresa brasileira para exploração de petróleo. Getúlio, como grande ladrão de ideias boas e ruim que era, com base na ideia boa de Monteiro cismado em encontrar petróleo no país, criou a Petrobrás.
Muitos anos depois disso tudo são levados aos bancos dos réus Pedrinho, Narizinho e Dona Benta. Motivo? Racismo. Reinações de Narizinho é a prova do crime. Cadeia póstuma ao velho Monteiro Lobato, ele que era comunista, pode ser preso (mesmo estando morto) pelos comunas direitistas chefiados pelo Grande Irmão branco: Lula (leiam “1984” livro de George Orwell).
Em reinações de Narizinho Monteiro Lobato nos mostra o Brasil rural paulista, com seus coronéis e preconceitos, antes o país imaginava que coronelismo era coisa só do nordeste. Nas suas reinações no Sítio do Pica Pau Amarelo Narizinho e Pedrinho, duas crianças da cidade, se encantam com o mundo mágico apresentados a eles pelas histórias de Dona Benta e Tia Anastácia que criam todo um universo lúdico e apresenta parte da nossa cultura popular aos dois coraçãozinhos urbanos de Pedrinho e Narizinho.
O livro viaja entre o fantástico e a dura realidade de um país cheio de contradições. Em determinados momentos o narrador do livro descreve Tia Nastácia com o olhar que se tem e sempre se teve até aqui das empregadas domésticas, hoje tratadas pelo eufemismo de “secretárias do lar”.
Monteiro Lobato não foi preconceituoso ou racista, levou ele para o imaginário infantil temas difíceis com o preconceito social e de raça. Fazer um recorte em uma obra literária e apontá-la como racismo é que é um crime, quem faz isso deveria ser processado por manipulação cultural.
Querem agora colocar notas explicativas nos livros de Monteiro Lobato. O que deve-se cobrar dos governos é uma profunda reforma no ensino fundamental, na formação de professores que vão atuar no nas séries iniciais para que tenham condições de trabalharem com um livro tão complexo como Reinações de Narizinho, como diria Antoine de Saint-Exupéry, livro que só as crianças entendem.
Não conheço nenhuma criança negra ou branca que tenha se tornado racista por ter imaginado-se vivendo inúmeras aventuras com o Saci, aliás o Saci é o elemento mitológico do bem na história junto com as crianças luta contra a Cuca, uma espécie de mutação de jacaré e gente sempre pronta para pegar daqui e comer dali.
Por que ninguém fala do ensino público fundamental no país? Só falam de cotas para universidades ou Enems e Prós- unes? Porque tanto professores e alunos das escolas públicas do ensino fundamental não têm prestígio social e político, são esquecidos, tratados como se fossem invisíveis não importando se negros ou brancos.
Deveria-se, no caso da Bahia, cobrar publicamente do governador do estado explicações pelo extermínio em massa dos jovens negros dos bairros não centrais de Salvador, cobrar da justiça a prisão de agentes do turismo sexual que estupram e roubam a infância das nossas meninas negras transformadas em “mulatas” do prazer.
Deveria-se convidar alguns cantores de bandas de pagodes da Bahia para uma educação cultural e social por escreveram canções nas quais as mulheres negras são chamadas de: Cadelas, pistoleiras, prostitutas e tantas outras pérolas do cancioneiro soteropolitano. Aliás, no lugar de convidar deveria-se enquadrá-los na lei racial.
O Grande Irmão Lula vetou (através dos seus parlamentares) do estatuto da igualdade racial às cotas para acesso de pessoas negras as universidades públicas, no dia da “festa” da aprovação do estatuto, O Grande Irmão Lula discursou, foi aplaudido de pé. Zumbi Lamenta, sua Serra da Barriga continua lutando sozinha.
Os negros e negras sobreviventes nas calçadas de Salvador, os que estão sendo exterminados nas ruas de Maceió, estão vivendo nas crakolândia morrem pelas armas policialesca do estado são negros reais e ainda estão no meio do oceano em um criminoso navio negreiro chamado indiferença.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Seleção

Porque sempre foi assim. Eu nunca precisei dizer que não reajo bem sob pressão, sendo avaliada em cada gesto, em cada palavra bem ou mal dita. É normal a ansiedade tomar conta e estragar tudo, e eu dizer o que não queria dizer, e fazer cara de paisagem, e ao final, sentir uma vontade imensa de chorar. No fundo no fundo a gente sempre acaba mentindo um pouquinho sobre quem a gente é, porque a gente quer parecer ser mais merecedor do que os outros, a gente quer parecer mais nobre do que realmente somos. A peneira é cruel.

Ao fechar a porta o primeiro arrependimento foi ter mentido sobre um dos motivos que me levaram até aí. Embora não seja o mais importante pra mim, eu gosto sim de dinheiro (e não é nada nobre dizer isso) e no mundo que a gente vive ele é importante para que tenhamos uma vida um pouco mais sossegada . E eu acho que os professores devem buscar qualificação profissional e serem bem remunerados por isso. No entanto, mais do que dinheiro, na nossa profissão é preciso que se trabalhe com amor, não o amor romantizado que acha que a educação sozinha vai mudar o mundo, mas o amor real que não se desmantela diante das dificuldades, mas busca nelas a força para continuar existindo. Dinheiro não enche a alma, amor sim. E pra mim, sem amor, sem desejo, não há dinheiro no mundo que me faça ficar.

É difícil se manter sóbria diante do advogado do diabo tentando desconstruir tudo que você acredita, ou pensa que acredita, ou já nem sabe mais diante da confusão e de ficar mais de quatro horas aguardando no banco dos réus. Estou zonza... e desconfiada, e desacreditada.

Talvez a visão pessimista seja apenas uma estratégia de defesa para amaciar a queda. A gente finge que nem liga e, se não der certo, a consciência finge estar mais tranquila. “Deus sabe de tudo, se não for agora é porque não era mesmo pra ser.” Mas a verdade é que no fundo no fundo a gente vai chegando quase lá  porque acredita que pode dar certo. E a gente sofre por isso, a gente sofre...


sábado, 20 de novembro de 2010

Meu sonho não faz silêncio

Meu sonho jamais faz silêncio
E a ninguém caberá calá-lo
Trago-o como herança que me mantém desperto
Como esta cor não traduzida em versos
Pois se fariam necessários muitos e tantos versos

Meu sonho vara madrugadas
Som alto
De timbales que se arrebatam em cânticos
E trago-o como Olorum na crença
Que não me pune em pecados
Mas
Enche-me o peito grávido de esperanças
Como malungos marchando ao sol de novembro
Subindo as serras
Defesa e guerra

Meu sonho jamais faz silêncio
É a lança brilhante de Zumbi
A espada de Ogum
É o lê, o rumpi, é o rum
É a furia sem arreios
Terra farta dos anseios
Desacato, ato, sem freios

Vôo livre da águia que não cansa
Me faz erê, me faz criança

Meu sonho jamais faz silêncio
É um griot velho que me conta as lendas
De onde fisga tantas lembranças

E com ele invado chats, pages, sites
Na intimidade de corpos em dança
Perpetuando o gosto pelo correto
Meu sonho é pura herança
Rastro
Dos que plantaram, lutaram, construíram
O que não usufruo
Areia que moldada em vaso
Onde não nos cabe culpas
É lúcido ao sol dos trópicos, charqueado ao frio
É como um fio

Grita alto e bom som
Que o seio do amanhã nos pertence
Carregamos toda pressa










Meu sonho não faz silêncio
E não é apenas promessa

Planta em mim mesmo, na alma
Palmares, Palmares, Palmares
Pelo que de belo, pelo que de farto
Muitos Palmares


Carrega como o vento escritos
Versos de Jônatas, Oliveira, Colina , Semog e Cuti
Alimenta e nutre
Lembrando que esta cor me mantém desperto
E não tenho sustos

Sentinela que tange o eterno quissange
Entende a volúpia do calor que me abriga
Desfaz a mentira , destruindo a intriga

Meu sonho jamais faz silêncio
Como um Ilê Aiyê acordando a liberdade
Descobrindo amante ávido o sexo pulsante da existência
Desejo de navegar todos os mares
Comandando todas as fragatas, naves

E nos lança em um solo de Miles
Nos recria em um solo de Coltrane
Clássico como Marsalis, Jazz como Marsalis

E que nem tentem que faça silêncio
Pois voltaria gritando em um texto de Solynca
ás que completa a trinca
Torna-se um canto de Ella, Graça, Guiguio, Lecy
Gente negra, gente negra
Jamelão, mangueira
Brilho da mais brilhante estrela
Nunca se estanca, bravo se retraduz em sina

Só não lhe cabem
Crianças arrancadas da escola
Pela fome que rasga gargantas
E nos promete vê-las
Alimentadas todas, cultas
Meu sonho é uma negra criança
Que luta

Ergue Quilombos, aqui , ali
Em cada mente, em cada face
Impávidos como Palmares, impávidos Ilês
Em todos os lugares
 Meu sonho não faz silêncio
Porque feito de lida
Teimoso como esta cor
Para sempre será desperto e certo
Mais que vivo, é a própria vida.

LIMEIRA, José Carlos. In Arco Íris Negro

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Sabia

Não precisavas vir
Com o coração fora do peito
Mostrando suas feridas
Remendos de amor
Eu já te sabia dor.


Não precisavas rasgar-te
Em versos no papel
Desfiando palavras
Difíceis e desertas
Eu já te sabia poeta.


Não precisavas aparecer
Em caminho de flores
Enfeitado de luz
Primaverando inverno
Eu já te sabia belo.


Não precisavas partir
Bebendo minhas lágrimas
Despindo
Nossas verdades
Eu já te sabia saudade.

Isa Lacerda.


segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Metrópole Qualquer

Prédios entre as nuvens
Pessoas entre os carros
Asfalto, cegueira, murmúrios.

Um homem vai depressa
Um cão vai depressa
Uma moto vai depressa.
Depressa... as janelas mal se olham.

Eta, vida besta meu Deus.

Isa Lacerda

Intertextualizando com o poema CIDADEZINHA QUALQUER ,de Drummond.

domingo, 14 de novembro de 2010

Livros

Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.

Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.


Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou ­ o que é muito pior ­ por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:


Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.


(Caetano Veloso)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

(Des) Equilíbrio

O mundo pede equilíbrio. Alguns estudos dizem que o equilíbrio é um princípio universal, aplicável e necessário em qualquer circunstância. Para vivermos felizes precisaríamos ter uma alimentação equilibrada, relacionamentos equilibrados, um corpo equilibrado, uma cabeça equilibrada, uma família equilibrada, meio ambiente equilibrado, enfim, uma vida com tudo nos conformes. Difícil, não? Eu diria até impossível nesses tempos...

Em meio a tanta correria o equilíbrio anda se escondendo por aí. As pessoas procuram nos consultórios psiquiátricos, nas terapias alternativas, nas religiões, nas artes, na escrita, nos amigos, nos amores e até nas paixões! O que posso afirmar é que nesta última ninguém vai encontrar. Equilíbrio requer consciência, e paixão não tem, não a conhece. Paixão pode até ser sinônimo de desequilíbrio, tudo é em demasia.

E dá um trabalhão encontrar equilíbrio vivendo neste mundo louco, haja disposição! Mas quem quiser se dar ao trabalho pode procurá-lo entre a razão e a emoção, entre a depressão e o deboche, entre o salgado e o insosso, entre o inverno europeu e o verão latino, entre a obsessão e o desprezo, entre o workaholic e o vagabundo, entre o marombado e o sedentário, entre o perfeccionista e o desleixado, entre o valentão e o medroso, entre o apaixonado e o acomodado, entre a solidão e a multidão, entre a loucura e a apatia, entre o On the Road e a inércia, entre o cheio e o vazio... O equilíbrio está mais ou menos por ali, no meio. Viu?

Mas se não quiser ter trabalho, você também pode comprar na farmácia. Vem em gotinhas, tem pra todas as ocasiões e dizem que é natural.

Falando assim parece até fácil, mas não é não. Tem gente que vive uma vida inteira sem encontrá-lo. Tem gente que,assim como eu, encontra equilíbrio em algumas coisas e em outras não, ou talvez nunca o encontre. Eu não conheço ninguém que o tenha encontrado em todos os aspectos da vida, até aquela pessoa zen que a gente acha que vive uma vida em total harmonia, quando chegamos perto, vemos que também tem lá seus desequilíbrios. A verdade é que de perto ninguém é muito certo mesmo... Mas vamos combinar que a falta de equilíbrio também tem lá seus encantos, e se bem utilizada pode tornar a vida muito mais interessante.

Isa Lacerda.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A Alma

Bastian balthazar Bux, herói de A história sem fim, viajava pelo reino da fantasia. A beleza era grande demais, e ele estava encantado. Mas beleza é perigosa. Precisamente por ser beleza. É na arena da beleza que Deus e o Diabo travam suas batalhas.

Olhando-se para o céu cheio de estrelas igualmente brilhantes, perde-se a noção de direção. E foi o que aconteceu - a beleza era tanta que Bastian acabou por se perder. Esqueceu-se de quem era. Perdeu sua própria imagem, a imagem que era o coração de sua alma. E começou então a vagar sem rumo.

Em seu vagar sem rumo, acabou por chegar a uma mina perdida numa planície gelada. Essa mina era guardada por Ior, o  mineiro cego, que explicou a Bastian o segredo dela:

Dentro dessa mina profunda e escura encontram-se guardados, sob a forma de transparências de mica, todos os sonhos da humanidade. Os seus sonhos também estão dentro dela. Se você quiser voltar a saber quem você é, terá que se lembrar dos sonhos que se esqueceu. Para isso será preciso descer até o fundo da mina e trabalhar sem nada ver, arrancando as placas de mica e trazendo-as para fora. No claro do dia, você poderá ver as imagens que não via no fundo escuro da mina. A maioria das imagens vai deixá-lo indiferente. Esses não são os seus sonhos. Mas, se por acaso acontecer de uma placa mica o comover, você poderá ter a certeza de que aquela imagem é o retrato da sua alma. Aquela imagem é o seu destino.

Foi isso que Bastian sentiu ao voltar de uma de suas incursões pelas profundezas escuras da mina. Tinha uma folha transparente de mica nas mãos. Olhava fixamente para ela.

Enquanto colocava a imagem sobre a neve, Bastian sentiu muita saudade... Era um sentimento que vinha de muito longe, como uma onda do mar que ao longe parece inofensiva, mas que, a medida que vai se aproximando, se tranforma numa parede de água da altura de uma casa, que arrasta tudo consigo. Bastian quase se afogou nessa onda de saudade, e teve de fazer um esforço para respirar. Seu coração lhe doía, era como se não fosse suficientemente grande para uma saudade tamanha...

Ele acabara de se encontrar com a imagem de sua alma.

***

Aquele rosto, placa de mica que o poeta via pela primeira vez - ele já o havia visto antes. Foi por isso que à surpresa seguiu-se a saudade. Ele se viu diante de um passado ao mesmo tempo desconhecido e conhecido. É por isso que, por vezes, a gente sente saudade sem saber de quê. Como se do passado viesse um perfume que toma conta do corpo - mas não conseguimos ver o lugar de onde ele vem, não sabemos o seu nome. Sentimos saudade do que não sabemos.

A saudade é o sentimento que mais se aproxima da paixão. Porque a paixão é o amor quando tocado pela morte. O amor tocado pela morte se inflama pelo medo da perda. E é assim que eu distinguiria o apaixonado do amoroso: o amoroso goza o seu amor com a leveza de uma criança, enquanto o apaixonado sofre a sua paixão por vivê-la sempre iluminada pela possibilidade de perda. Esse sentimento que surgiu tão de repente, não poderá desaparecer tão de repente quanto apareceu? Rilke estava apaixonado e deprimido quando escreveu: "Quem foi que assim nos fascinou para que tivéssemos esse olhar de despedida em tudo que fazemos?"

Por isso o amante sente saudades da mulher amada mesmo estando ela presente. Cassiano Ricardo perguntava:

Por que tenho saudade
de você, no retrato,
ainda que o mais presente?

O que explica a razão de a visão do rosto amado ser sempre acompanhada de uma certa tristeza. A pessoa, objeto da paixão, está sempre pronta para partir. A alma, lá no fundo, é saudade...


(Rubem Alves in: Cantos do Pássaro Encantado)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O perigo de uma única história

Todos os dias, em casa, na rua, no trabalho, lidamos com diferenças culturais, étnicas, sexuais, enfim, um grande leque de possibilidades cabíveis aos seres humanos. Contudo, é inegável que essas diferenças acabam se manifestando de maneira muito mais intensa nas escolas, onde a formação das identidades se dá mediante padrões pré-estabelecidos, formatados em modelos eurocêntricos, heterossexuais, segregando outras possibilidades de ser. Crescemos ouvindo uma única história sobre o Brasil, sobre a humanidade, sobre o mundo. E nessas histórias já estão embutidas as relações de poder que um povo tem sobre outros, que uma cultura tem sobre as outras.  E infelizmente, a maioria de nós, educadores, acabamos reproduzindo esses modelos que nos foram passados sem a necessária reflexão.

Hoje não é raro ouvir e ver manifestações em favor da diversidade, considerando que somos frutos de um mix cultural entre diferentes povos e raças, o que até somos. Mas o que importa não é apenas reconhecer que as diferenças existem, mas sim refletir sobre como podemos lidar com a diversidade sem instituí-la como fatores determinantes das desigualdades, continuando a naturalizar a supremacia dos brancos sobre os negros e indígenas, dos heterossexuais sobre os homossexuais, transexuais, etc., dos sulistas sobre os nordestinos, da ciência sobre o saber popular, dos ricos sobre os pobres e tantas outras hierarquias que acabam  limitando o acesso de grande parte da população de exercerem seus direitos, sobretudo o direito a liberdade de ser quem são.

Este vídeo, dividido em duas partes, é muito interessante para que possamos refletir, sobretudo nós, educadores, sobre que verdades estamos mostrando aos nossos alunos.

Abraços em todos e bons dias!

Isa Lacerda.




quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Inominável

Hoje eu teria um monte de coisas bonitas para escrever, mas estranhamente, quando a coisa é bonita demais eu não consigo encontrar palavras para descrevê-las. E deve ser exatamente por isso que eu acabo a chamando de "coisa". Sinto-me uma incompetente de primeira quando isso acontece, quando não consigo dar nome aos sentimentos, acontecimentos, alegrias. Talvez certas coisas sejam realmente inomináveis. Foi Saramago quem disse que há uma coisa que não tem nome, e que essa coisa é o que somos. Acho que é exatamente isso que eu sou hoje, um amontoado se sentimentos e desejos e alegrias inomináveis. Então não há porquê sofrer e burocratizar o que estou sentindo. Que eu seja, apenas!

Isa Lacerda.