sexta-feira, 18 de junho de 2010

Esse moço que estou conhecendo...

Protopoema

Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para
mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o
próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa
dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas
da memória e o vulto subitamente anunciado do
futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que
as aves digam nos ramos por que são altos os
choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra
viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.

José Saramago


(in PROVAVELMENTE ALEGRIA, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1985, 3ª Edição)


4 comentários:

  1. Lindo... e triste... do jeito que vc gosta...

    Abçs melancólicos... Perde a Língua Portuguesa um dos seus maiores gênios...

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  2. Isa,

    Fiquei bem chateado pela partida desse mestre. Gosto muito dos livros dele.

    Abraços

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  3. Pois é, Isabele!
    Hoje estou passeando nos sentimentos dos colegas ao invés de fazer uma postagem sobre a ida mais cedo de Saramago. Estava eu lendo Lobato e suas peripécias "infantis" através de Emília, Pedrinho e Narizinho, sobre a questão feminina de D. Benta, mulher matriarca de leituras e sabedorias dos livros, que divide com a Nastácia das experiências e sabedorias da vida, o governo de um sítio - mundo ainda predominantemente machista, qual era a condição da mulher, mesmo? Além da crítica "silenciosa" ao preconceito racial em pleno início do século XX, das imobilizações políticas, porém, da ousadia da boneca atrevida que vira gente (em A chave do tamanho) e na qualidade humana "escolhe" ser morena de cabelos castanhos... O livro "O presidente negro - norte-americano"... E tanta gente não-leitora dizendo que ele era preconceituoso!!! Autores como estes aparecem em cada século a nos faz ler várias vezes e aprender todas as vezes que voltamos a ler, novos aprendizados despontam, e nos msoltram o quanto são visionários. Um é brasileiro e o outro português, bom legado o nosso!
    Beijinhos!

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  4. Pois é maria, em nossa história os grandes homens nem sempre foram bem compreendidos, sobretudo pelos não leitores, aqueles que apenas "ouviram dizer". Bom mesmo este nosso legado, mas cada vez mais raro nos últimos tempos...

    Abçs em todos.

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