domingo, 17 de julho de 2011

Blogagem coletiva: Minhas primeiras leituras

Quando Pretinho apareceu na minha vida, foi logo paixão a primeira vista. Eu mal havia aprendido a ler, de modo que as palavras iluminavam meu olhar, e a figura daquele boneco pretinho sentado na nuvem me fazia viajar. Eu ainda nem imaginava quantas e quantas vezes mais na vida eu estaria nas nuvens através da leitura. O bonito da história de Furtado era que, de forma tão singela, me falou de amizade e amor, mas também de preconceito, de história do Brasil, de maldade e de perdão.
A história do boneco que sofreu preconceito dos outros brinquedos por ser preto me fez sentir emoções das mais bonitas. Eu amava tanto aquele livro, que tinha vontade de contar sua história para todo o mundo. Os anos corriam, e todas as vezes que o lia, mais entendia o significado daquilo que muitas vezes eu veria na escola, na rua, e até mesmo em casa. O senso de solidariedade e de justiça me veio cedo... Por isso este livro me marcou tanto. Nem sei se foi o primeiro, mas sem dúvida foi o que me fez amar os livros e as boas histórias. E uma das semanas mais bonitas que passei na escola, já como professora, foi quando li o livro com minha turma de crianças. Mais uma vez chorei, por toda a emoção que a história me fez lembrar.

Gostaria de dizer aqui que minha infância foi rodeada de livros com suas histórias fantásticas, mas não foi. Em minha casa mal se via os livros que era preciso comprar para a escola e o jornal de domingo. Entretanto, foram esses mesmos que me deram as pistas necessárias para o mundo que eu seguiria pelo resto da minha vida. Costumo dizer que foram os livros que me escolheram, que me chamaram. E como professora que sou, acredito que o estímulo da família contribua significativamente para a inclusão das crianças no universo literário, mas qualquer criança pobre, sem incentivo na família, é capaz de reconhecer a beleza da literatura, se apaixonar, tornar-se escritor ou simplesmente amante da leitura.

Depois do “Pretinho, meu boneco querido”, muitos outros vieram encantando e desencantando meu mundo, porque literatura é assim, descortina até aquilo que não queremos ver, mas que precisamos enxergar.

Sobre sua serventia, deixo Bartolomeu Campos Queiróz dizer:

“A literatura (arte) não é servil. Ela só existe em liberdade, e seu compromisso é para com a revelação.”

E desde então a literatura me faz revelações que eu jamais poderia imaginar, sobre mim e sobre o mundo, desde a magia das aventuras de Narizinho, os encantos e realidades dos poemas de Drummond até as histórias viscerais de Dostievski. É tudo isso que vai constituindo o que sou, e o que ainda serei.


PS. Ao menino-homem, muito obrigada por me convidar mais uma vez para sua festa. Adoro! Parabéns!

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Lavando a alma

Recostada à parede de azulejo do box, deixava a água do chuveiro queimar seu corpo. O calor intenso das gotas que deslizavam sobre sua pele misturava-se às lágrimas. Absorta, seu olhar estava fixo para o ralo do box, onde escorria tudo que saía de sua pele e de seus olhos. Já nem mais sabia por que chorava, talvez fosse apenas o cansaço, cujo banho solitário tratava de cuidar.

Enquanto desanuviava o espírito, todo o banheiro se anuviava de branco vapor. Sua pele já ardia. Gostava daquela sensação de corpo se descolando do corpo. 

De repente, uma pequena lacraia vence o fluxo da água e surge do ralo. Ao invés de histeria ao vir o bicho peçonhento, nem se moveu. Continuou recostada à parede, certa de que a força da água se encarregaria de levar o bicho de volta ao seu lugar. 

Lembrou-se da menina chinesa, cujo único toque de carinho fora sentido através do pouso de uma mosca sobre seu corpo. Ao perceber a lacraia se aproximando fez um leve movimento com a perna, empurrando-a junto com a água para o ralo, que foi fechado com o dedo do seu pé. 


A água continuava a cair sobre seu corpo vermelho. Decidiu abrir mais o chuveiro, sentir a água mais fria... Pôs-se  de pé, corpo ereto. Antes que toda a água da piscina que se formara transbordasse por todo o banheiro, abriu o ralo e permitiu que tudo fosse abaixo de uma só vez. Centrou o rosto no jato do chuveiro, desligou-o depois de alguns segundos e envolveu-se na toalha macia. Deitou-se na cama e dormiu um sono leve e longo, como há muito não fazia.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Casa (Ana Jácomo)


Não faz muito tempo, uma amiga me disse que não tem estrutura para sentir dor com a intensidade com que geralmente sinto quando a dor resolve dar as caras. Ao escutar o barulho da porta que anuncia a chegada da dita-cuja, que sabe jeitos de abrir todo tipo de tranca, ela foge, contou-me rindo da costumeira estratégia. Irmanada também pelas artimanhas que inventamos pelo caminho, às vezes apenas para sobreviver às ameaças dos nossos próprios dramas, eu lhe perguntei como poderia escapar se a dor, ardilosa, espaçosa, já estava dentro de casa.

“Ah, querida, mas tem a porta dos fundos!...”

Tem mesmo.

Rindo ali com ela, cada uma experimentando a própria encrenca emocional da vez, com o roteiro da vez, com o cenário da vez, com o elenco da vez, eu me lembrei de um monte de situações em que tentei fugir da mesma maneira, pela porta dos fundos. Eu me lembrei de vezes em que, de fato, fugi, toda prosa por acreditar ter conseguido. Eu me lembrei que fugir, às vezes, é necessário para recuperar o fôlego. Para restaurar a força. Para retomar o contato.

Não é que eu tenha estrutura para sentir dor. A propósito, eu acredito que bravura mesmo é ter estrutura para sentir felicidade. Na verdade, toda vez que as dores abissais me visitam e mergulho no oceano nada pacífico do seu breu é trabalhoso demais emergir para o lugar onde eu já consiga ver pelo menos um bocadinho de sol. Na verdade, o que eu acho é que não tenho escolha que não seja invocar a coragem para ficar comigo e tentar transformar o que precisa ser transformado, mesmo doendo à beça, mesmo tremendo de medo. Aprendi com o tempo das fugas que quando a dor atravessa a porta é inútil correr. Na verdade, o que eu tenho, agora, simplesmente por memória, é alguma lucidez e um bocado de preguiça.

Toda porta dos fundos nos leva para um lugar fora da gente. Uma hora, mais cedo ou mais tarde, querendo ou não querendo, fazendo birra, tentando desconversar, precisamos voltar pra casa se não quisermos passar o resto da vida longe de nós mesmos. E aí tanto faz por qual porta nós voltamos, se pela da frente, se pela dos fundos: a dor está lá, empoeirada que seja. Cheirando a mofo, quem sabe. Esta lá, com uma cara ou com outras, paciente, a nossa espera. E maior, bem maior, que fuga costuma ser fermento. Ela não vai embora só porque a gente fugiu. Quem dera pudesse.

Aprendi com o tempo das fugas e com o resultado de cada uma delas que podemos adiar o encontro do nosso olhar com os olhos perturbadores da dor, mas não tem jeito: em algum quarteirão da vida, eles vão se encontrar. Por isso, agora, toda vez que acontece, escolho ficar em casa. Escolho encarar de uma vez. Mergulho inteirinha, protegida com o escafandro da fé e do amor que me habitam.

Dor adiada é dor acumulada, apenas isso, é o que aprendi comigo. É o que aprendi com as dores. E a vida é tão mágica que, lá no fundo mais fundo do oceano nada pacífico de cada uma delas, lá no instante ou quase em que a pilha da lanterna acaba, a gente descobre um jeito novo, muito lindo, muito nosso, comovente muitas vezes, para conseguir emergir e transformar o que parecia impossível de transformação. E não é exagero dizer que geralmente emergimos mais corajosos. Mais ternos. Mais bondosos. Mais nós mesmos. Mais conscientes do que, de verdade, nos importa. Com mais urgência de nos sentirmos felizes na nossa própria pele.

No fundo mais fundo, não é raro nos sentirmos sozinhos. Estamos doendo tanto que, pra começo de conversa, a nossa própria presença nos falta, isto que é a mais perigosa solidão. Mas é um engano temporário, comum nos tempos em que os nossos olhos estão embaçados demais pelo medo: tanto faz o aparente e transitório tamanho da solidão, não estamos sozinhos nunca. E não estamos mesmo.

O amor, não importa de que forma se manifeste, encontrará maneiras para nos tirar lá desse lugar com recursos às vezes inimagináveis. Podemos estar tão cansados pelo breu que não conseguimos perceber num primeiro momento, nem num oitavo, nem num trigésimo, o convite da luz. Mas, de um jeito ou de outro, o amor que nos habita não cansará de tentar. Ele não foge pela porta dos fundos.

JÁCOMO, Ana. In: Cheiro de flor quando ri