sábado, 20 de agosto de 2011

A tristeza permitida



Se eu disser pra você que hoje acordei triste, que foi difícil sair da cama, mesmo sabendo que o sol estava se exibindo lá fora e o céu convidava para a farra de viver, mesmo sabendo que havia muitas providências a tomar, acordei triste e tive preguiça de cumprir os rituais que normalmente faço sem nem prestar atenção no que estou sentindo, como tomar banho colocar uma roupa, ir pro computador, sair para compras e reuniões – se eu disse que foi assim, o que você me diz? Se eu lhe disser que hoje não foi um dia como os outros, que não encontrei energia nem para sentir culpa pela minha letargia, que hoje levantei devagar e tarde e que não tive vontade de nada, você vai reagir como? 

Você vai dizer “te anima” e me recomendar um antidepressivo ou vai dizer que tem gente vivendo coisas muito mais graves do eu (mesmo desconhecendo a razão da minha tristeza), vai dizer para eu colocar uma roupa leve, ouvir uma música revigorante e voltar a ser aquela pessoa que sempre fui, velha de guerra.

Você vai fazer isso porque gosta de mim, mas também porque é mais um que não tolera a tristeza: nem a minha, nem a sua, nem a de ninguém. Tristeza é considerada uma anomalia do humor, uma doença contagiosa, que é melhor eliminar desde o primeiro sintoma. Não sorriu hoje? Medicamento. Sentiu vontade de chorar à toa? Gravíssimo, telefone já para o seu psiquiatra.

A verdade é que eu não acordei triste hoje, nem mesmo com uma suave melancolia, está tudo normal. Mas quando fico triste é comum, é um sentimento tão legítimo quanto a alergia, é um registro da nossa sensibilidade, que ora gargalha em grupo, ora busca o silêncio e a solidão. Estar triste não é estar deprimido.

Depressão é coisa muito mais séria, contínua e complexa. Estar triste é estar atento a si próprio, é estar desapontado com alguém, com vários ou com si mesmo, é estar um pouco cansado de certas repetições, é descobrir-se frágil num dia qualquer, sem uma razão aparente – as razões têm essa mania de serem discretas.

“Eu não sei o que meu corpo abriga/ nestas noites quentes de verão/ e não importa que mil raios partam/ qualquer sentido vago de razão/ eu ando tão down ...”. Lembra da música? Cazuza ainda dizia lá no meio dos versos, que pega mal sofrer. Pois é, pega. Melhor sair pra balada, melhor forçar um sorriso, melhor dizer que está tudo bem, melhor desamarrar a cara. "Não quero te ver triste assim”, sussurrava Roberto Carlos em meio a outra música. Todos cantam a tristeza, mas poucos a enfrentam de fato. Os esforços não são para compreende-la, e sim para disfarçá-la, sufocá-la, ela que, humilde, só quer usufruir do seu direito de existir, de assegurar o seu espaço nesta sociedade que exalta apenas o oba-oba e a verborragia, e que desconfia de quem está calado demais. Claro que é melhor ser alegre que ser triste (agora é Vinicius), mas melhor mesmo é ninguém privar você de sentir o que for. Em tempo: na maioria das vezes, é a gente mesmo que não se permite estar alguns degraus abaixo da euforia. 

Tem dias que não estamos pra samba, pra rock, pra hip-hop, e nem por isso devemos buscar pílulas mágicas para camuflar nossa introspecção, nem aceitar convites para festas em que nada temos para brindar. Que nos deixem quietos, que quietude é armazenamento de força e sabedoria, daqui a pouco a gente volta, a gente sempre volta, anunciando o fim de mais dor – até que venha a próxima, normais que somos.

20 de novembro de 2005

(MEDEIROS, Martha. In: Doidas e Santas. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010, p.21-23.)


quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Às nossas

Quero minhas lágrimas em teus olhos
Fazer do nosso choro um mar
Embaçar nossa imagem de tão perto
E tão profunda
E tão salgada...





terça-feira, 9 de agosto de 2011

Janta




Eu quis te conhecer, mas tenho que aceitar
caberá ao nosso amor o eterno ou o não dá
pode ser cruel a eternidade
eu ando em frente por sentir vontade


Eu quis te convencer, mas chega de insistir
caberá ao nosso amor o que há de vir
pode ser a eternidade má
caminho em frente pra sentir saudade


Paper clips and crayons in my bed
everybody thinks that I'm sad
I take my ride in melodies and bees and birds
will hear my words
will be both us and you and them together


I can forget about myself trying to be everybody else
I feel allright that we can go away
and please my day
I'll let you stay with me if you surrender

Eu quis te conhecer, mas tenho que aceitar
I can forget about myself trying to be everybody else
caberá ao nosso amor o eterno ou o não dá
I feel allright that we can go away
pode ser a eternidade má
and please my day
eu ando sempre pra sentir vontade
I'll let you stay with me if you surrender


(CAMELO, Marcelo) com Malu Magalhães



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domingo, 7 de agosto de 2011

Puseram-me uma tampa


Puseram-me uma tampa —
Todo o céu.
Puseram-me uma tampa.
Que grandes aspirações!
Que magnas plenitudes!
E algumas verdadeiras…
Mas sobre todas elas
Puseram-me uma tampa.
Como a um daqueles penicos antigos —
Lá nos longes tradicionais da província —
Uma tampa.


(PESSOA, Fernando. In: Poesia Completa de Álvaro de Campos. São Paulo: Companhia da Letras, 2007. p.443)