segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Sobre verdades e beleza

Quando Renata inventou de fazer biologia, já nos primeiros dias de aula começou a detonar meus sonhos românticos com a natureza. Disse-me logo de cara que o belo sol alaranjado, que fazia meu olhos brilharem de emoção ao refleti-lo, era nada menos que acúmulo de poluentes na atmosfera. Desde então o pôr do sol no arpoador perdeu um pouco do seu brilho, já não era mais só beleza.

O sol está vermelho de tristeza, passei a pensar todas as vezes que via a estrela alaranjada. Impossível olhar com os mesmos olhos quando a verdade se revela. Perde-se o olhar ingênuo de puro encantamento quando os defeitos são expostos. No entanto, não consegui deixar de contemplá-lo, e muito menos deixar de amá-lo, ainda que reconhecesse o lado negro do espetáculo.


Toda tristeza carrega consigo um pouco de beleza. A beleza da fragilidade, a beleza reconhecer-se não tão bonito, não tão puro, não só brilho e energia.

Bonito é ser reconhecido belo, não obstante a poluição que invade nossa atmosfera.

Mas ainda bem que Renata desistiu dessa coisa de querer saber a verdade sobre todos os fenômenos naturalísticos, só assim ainda posso me deliciar sem culpa com a água morninha de uma praia, o vento geladinho da montanha...

Isa Lacerda.

sábado, 28 de agosto de 2010

MAIS UMA DOSE

Viu o menino no dia do enterro do amigo supostamente comum aos dois. Apaixonou-se. Nunca mais viu aquele rosto, apenas lembrava-se dele em lágrimas doloridas supostamente comum aos dois.
Começou matando Pedro, depois Raul: tinha esperança que o menino lindo aparecesse em outro enterro de defunto comum aos dois.
Já havia matado a lista inteira de conhecidos que estava no enterro e ele não aparecia. Desesperada, louquinha de amor, mandou e-mails para todos os conhecidos avisando que se mataria às 14h do sábado - o enterro seria às 7h da manhã no domingo. Assim o fez. Nem ele e nem os amigos compareceram ao ato de piedade cristã.

(Desejo. Edney Santana)


Helena não se importava com prognósticos, com previsões do tempo, com provisões de fundos, com a despensa ou com sinais fechados.
Helena era uma mulher de acasos.

(Epitáfio para Helena. Herculano Neto)

É rapidinho, mas é uma delícia! E ainda é por conta da casa!!!


Livro de microcontos desses dois queridos viventes de Santo Amaro-BA.

Se quiser outras doses, os autores as ofertam. É só baixar aqui!

Boa degustação!

Ver mais desses moços em Non, je ne regrette rien e !Porque você não faz poema?

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Fora do Corpo

Amiga, foi uma emoção e orgulho imenso vê-la hoje!

Senti-me fora do corpo contigo...

Belas, suas asas...


Amo! Amo! Amo!

Parabéns!



segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Arte popular

Hoje ouvi uma discussão interessante no rádio a respeito do artista plástico Vik Muniz. Falava-se das críticas que o artista vem enfrentando pela popularidade de sua arte, que vem sendo publicada sem a menor cerimônia na abertura da novela das oito. Afinal, obra de arte de qualidade não deve ser exibida para os populares que assistem as novelas.

Sinto que no Brasil, tudo que é popular, do gosto do povo, perde o valor. Basta o artista – seja ele músico, escritor, pintor, etc. - começar a fazer muito sucesso, para que a crítica especialista caia de pau em cima! Enquanto o sujeito (e sua arte) é apreciado apenas por uma elite intelectual, ele é considerado membro imortal do panteão artístico, daí basta o mesmo sujeito, com as mesmas obras, cair no gosto popular e pronto: não presta mais!


Eu não entendo muito de arte (talvez eu não entenda nada), mas pelo que andei lendo, Vik é um dos artistas plástico contemporâneo (e brasileiro!) mais conceituados no mercado de arte internacional, criando e recriando arte com os recursos mais inimagináveis possíveis, do açúcar à sucata. Em sua exposição no MAM do RJ no ano passado, o artista atraiu nada menos que 48 mil visitantes em dois meses, recebendo desde internos de instituições psiquiátricas, catadores de lixo e alunos de escolas públicas, à classe média carioca e magnatas do mercado de arte. O cara não para de aparecer em jornais e revistas, fez um documentário que foi premiado no festival de Berlim, enfim, está dominando as mídias de comunicação, e em consequência tem levando sua arte ao povo, sejam eles elites ou plebes.

Decerto, muito do que cai no gosto popular pode ter um caráter duvidoso, até porque o que se dá ao povo, na maioria das vezes, é lixo da pior qualidade. Mas acredito que há também muita coisa boa por aí. E o fato de um tipo de arte ser apreciada pelas camadas populares (e aí eu me incluo) de forma alguma a empobrece, ao contrário, significa que ela está ao alcance de todos, como toda obra de arte deveria estar.

Isa Lacerda.


Às vezes eu acho que a melhor coisa que um artista pode fazer para ganhar notoriedade e respeito à sua arte, e ainda ter seus pecados perdoados, é morrer!

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

E tudo mudou...

O rouge virou blush
O pó-de-arroz virou pó-compacto
O brilho virou gloss

O rímel virou máscara incolor
A Lycra virou stretch
Anabela virou plataforma
O corpete virou porta-seios
Que virou sutiã
Que virou lib
Que virou silicone

A peruca virou aplique, interlace, megahair, alongamento
A escova virou chapinha
"Problemas de moça" viraram TPM
Confete virou MM

A crise de nervos virou estresse
A chita virou viscose.
A purpurina virou gliter
A brilhantina virou mousse

Os halteres viraram bomba
A ergométrica virou spinning
A tanga virou fio dental
E o fio dental virou anti-séptico bucal

Ninguém mais vê...

Ping-Pong virou Babaloo
O a-la-carte virou self-service

A tristeza, depressão
O espaguete virou Miojo pronto
A paquera virou pegação
A gafieira virou dança de salão

O que era praça virou shopping
A areia virou ringue
A caneta virou teclado
O long play virou CD

A fita de vídeo é DVD
O CD já é MP3
É um filho onde éramos seis
O álbum de fotos agora é mostrado por email

O namoro agora é virtual
A cantada virou torpedo
E do "não" não se tem medo
O break virou street

O samba, pagode
O carnaval de rua virou Sapucaí
O folclore brasileiro, halloween
O piano agora é teclado, também

O forró de sanfona ficou eletrônico
Fortificante não é mais Biotônico
Bicicleta virou Bis
Polícia e ladrão virou counter strike
Folhetins são novelas de TV
Fauna e flora a desaparecer
Lobato virou Paulo Coelho
Caetano virou um chato

Chico sumiu da FM e TV
Baby se converteu
RPM desapareceu
Elis ressuscitou em Maria Rita?
Gal virou fênix
Raul e Renato,
Cássia e Cazuza,
Lennon e Elvis,
Todos anjos
Agora só tocam lira...

A AIDS virou gripe
A bala antes encontrada agora é perdida
A violência está coisa maldita!

A maconha é calmante
O professor é agora o facilitador
As lições já não importam mais
A guerra superou a paz
E a sociedade ficou incapaz...

... De tudo.

Inclusive de notar essas diferenças.


(Luis Fernando Veríssimo)

Tudo pra você


O que emana deste rosto é pra você
Meu risos
Minhas lágrimas
Meus olhos tristes sorrindo

O que sai desta pele é pra você
Meu calor
Meus arrepios
Minha dor te pedindo

O que vem do inconsciente também é pra você
Meu medos
Meus sonhos
Meus desejos reprimidos

Tudo que há neste corpo é seu
Meu esforço
Minhas curvas
Minhas ruas te seguindo

E neste papel, é tudo seu
Meus versos
Meus rascunhos
Meu desenho colorido

E eu, que sempre fui tão egoísta
Não necessito mais nada
É tudo pra você

Meu corpo
Minha alma
Meu viver

Só pra te fazer sorrir...

Amor é bicho instruído

Amor é bicho instruído
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 15 de agosto de 2010

Dançando


A moça já nasceu com a dança no corpo, e ele quer entrar no ritmo. Os corpos se unem no salão, ele tenta acompanhá-la, e ela o conduz sem se importar com os olhos de espanto. O moço, todo desajeitado, às vezes pisa no pé da bailarina, mas ela já está acostumada às dores carregadas aos pés, e até acha bonito todo o esforço do aprendiz para acompanhá-la. Eles sabem que é difícil dançar junto, que é preciso sintonia e técnica. Mas sabem também que a dança só é valida se houver emoção entre os pares, se a música realmente valer a pena, se fizer sentido. E entre atropelos e descompassos eles tomam conta do salão. Não se importam com os passos ensaiados, apenas dançam obedecendo as batidas dos corações.

Valsinha
(Chico Buarque e Vinícius de Moraes)

Um dia, ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto, convidou-a pra rodar
E então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça, foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Lost in Translation

(por Fernando Vieira)

Lost in Translation, de Sofia Coppola, é um filme cheio de beleza e sentido. O título em português é Encontros e Desencontros, mas este é um caso em que o nome original confere muito mais com o roteiro (na maioria das vezes é assim). Até porque os personagens centrais estão mesmo perdidos, não só na tradução do japonês para o inglês, mas em seus respectivos casamentos. Charlotte casada há dois anos; Bob Harris já com vinte e cinco anos de estrada. Mas os dois estão precisamente na mesma situação: sozinhos e insones. Então eles fazem companhia um ao outro.

A esposa de Harris está preocupada com o aniversário do filho, a cor do tapete, a cor do escritório, o show de balé da filha – e tudo isso (diga-se de passagem) é preocupação louvável. Talvez ela somente tenha esquecido que, além de filhos, casa e tapete, também existem maridos e estes são tão importantes quanto as crianças e a casa. O marido de Charlotte está preocupado com bandas de música, amigas de ocasião, trabalho, viagens, e está sempre com uma pressa incrível. Também não há nada demais em gostar de trabalhar e ser prático, rápido. Talvez ele somente tenha esquecido que, além do trabalho e das colegas bonitinhas, também existem esposas e estas merecem no mínimo o mesmo carinho dedicado à profissão.

E como estão sozinhos e são pessoas interessantíssimas, Bob e Charlotte se apaixonam. Um amor lindo, sensual, sensível, mas que não se realiza... Porque se houvesse namoro de verdade, estragaria tudo: eles eram casados e não estavam ali para ludibriar maridos e esposas. Simplesmente estavam ali, perdidos na tradução, unidos pela insônia. Então eles se dão carinho mútuo, amor recíproco, diálogo, ombro, abraço, atenção, tudo que, por vezes, vale muito mais do que os rituais de penetração. Desde o momento em que se conhecem e se atraem, eles fazem companhia um ao outro, e a viagem deixa de ser enfadonha e cansativa para tornar-se uma das mais belas histórias de amor.

Some-se a tudo isso o fato de o filme ser bastante engraçado. Bill Murray mereceu a indicação ao Oscar, pois, além de nos emocionar na interpretação de um homem educadíssimo (os homens normalmente são mal educados), leva-nos também a boas gargalhadas. Scarlett Johansson está incrivelmente sensual com seu olhar lindo e perdido, sempre molhado de lágrimas.
Mas vamos lá. Uma obra de arte sempre possui uma mensagem fundamental, não é mesmo? E qual seria a mensagem deste filme? Bom... Parece o seguinte: vocês, esposas, nunca pensem que seus maridos são seus, que eles estão à disposição e já não merecem tantos cuidados assim. E vocês, maridos, nunca pensem que suas esposas são suas, que elas estão à disposição e já não merecem tantos cuidados assim. Ninguém é propriedade de ninguém; todos têm sentimentos, coração, emoção. Todos precisam deste combustível essencial que é a demonstração de amor, sem a qual as relações se exterminam.

Bob Harris se mostra com uma dignidade quase anormal. Pouquíssimos homens se deitariam com uma menina linda, carente, sensível, sem pelo menos beijá-la. Mas ele o faz, ou melhor, não faz. Não beija, não namora; deixa para namorar uma mulher que não tem um pingo de significado para ele. E por que não a Charlotte, se era ela o objeto do verdadeiro amor? Porque ela era sensível, nova, carente, e casada. Portanto o filme mostra, de modo muito original, que a gente até pode enlouquecer um pouquinho, a gente até pode de repente querer jogar tudo para o alto. Mas daí a colocar tudo em prática, as coisas passam forçosamente pela questão do caráter.

E é por isso que Bob Harris volta para casa, para a esposa Lydia e seus filhos. E Charlotte fica ainda no Japão, com seu marido apressado e vazio.

Não há, porém, nenhum tipo de garantia. Pode acontecer que amor e admiração de repente se juntem para se sobrepor à responsabilidade, levando-nos à formação de uma jazz band.

Ver mais em Língua em Transe

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Carta ao Zé

Hoje acordei com uma saudade imensa de você, Zé. Tem tanta coisa que eu queria conversar contigo... Daí eu abri uma caixinha de saudades que fica no fundo do armário e encontrei um cartão teu. Tuas palavras, como sempre, sábias. Você nem foi muito além dos bancos escolares, Zé, mas é a pessoa mais inteligente que eu conheci. Eu sei que se você estivesse aqui agora, eu nem precisaria falar tanto pra te explicar o que acontece e você já entenderia, e ainda sem dizer muita coisa, você me daria algumas respostas.

Ai, Zé... Eu pensava que conforme a gente fosse crescendo e tentando aprender sobre as coisas, sobre as pessoas, a gente ia ficando mais feliz. Mas é tudo mentira, Zé, e você até tentava me alertar, querido. Quanto mais eu conheço as coisas e as pessoas, menos feliz eu vou ficando. E olha que eu conheço muita gente legal Zé, uma gente bonita que continua bonita desde aquela época. Mas também é tanta gente feia que a gente vai percebendo nesse mundo! Se você estivesse aqui, ia me dar muitos argumentos para comprovar que a humanidade ainda vale a pena; que ainda vale a pena ser bonito e ver beleza nas coisas. Eu tenho tentado, Zé, mas é difícil...

Se um dia você vier aqui, vai ver que eu voltei a escrever. É tão difícil escrever, né? E eu também me enganei com a escrita, Zé. Eu pensava que quanto mais eu fosse escrevendo, mais eu me conheceria, mais eu me entenderia. Só que quanto mais eu escrevo, Zé, mais enrolada eu me sinto, mais perdida! Daí eu fico escrevendo um monte de bobagens pra tentar explicar a bobagem anterior! E isso parece que não acaba nunca... Eu, que tinha mania de escrever e jogar tudo fora, por esses dias tomei coragem e comecei a publicar nesse blog algumas coisas, e como tem doido pra tudo, parece que há meia dúzia de pessoas que até gostam de me ler. E eu fico feliz, mas a maioria das coisas eu tenho vergonha de publicar, Zé. Ou medo, sei lá! Eu queria que você lesse esses meus escritos secretos, só você seria capaz de compreender essas loucuras da minha cabeça e me dizer alguma coisa. E tentar me explicar, já que eu mesma não consigo.

Tem dias que eu acordo com essa tristeza, Zé. Eu fico triste pensando que muita coisa podia ser diferente. Eu me entristeço com os meninos nos sinais, com as notícias do mundo. Entristeço-me ao ver a grávida sem esperança naquela barriga cheia, mas vazia. Eu fico triste de pensar nas pessoas que não compreenderam que pode haver amor verdadeiro entre dois amigos, sem que haja nenhum interesse ou segundas intenções entre eles. Eu fico triste porque eu queria sentar com você e ficar horas conversando, falando das minhas coisas e te ouvindo, e no final da conversa dar um longo abraço e ver tudo com mais clareza, e sentir o mundo mais leve.

Ainda bem que há poesia, Zé. Ela é que me salva nessas horas. Mas outro dia eu li um escrito de uma colega, que dizia que às vezes a poesia só não basta, que o amor só não basta. E eu achei bem razoável. Às vezes a nossa tristeza supera a beleza da poesia e do amor; às vezes a poesia é a própria tristeza. Mas a gente não pode deixar isso acontecer com frequência, Zé. Pode não... Precisamos ter olhos para ver beleza...

Essa noite eu tive um sonho interessante. Havia uma coisa agarrada à parede aqui de casa. Eu pensei que fosse um bicho. Uma espécie de inseto pra lá de grande para ser um inseto. Na verdade não podia ser inseto. Tinha forma de bastão, amadeirado, marfim. Eu nem sei porque, mas decidi que aquilo era um inseto, e devia ter uns 10 centímetros de comprimento e uns 3 de largura. Olha como eu sou, Zé: vejo um bichinho de 10 centímetros e acredito que ele é gigante, e fico com medo. E no meu destemperamento com o desconhecido, empurro-o para longe. Ele cai e quebra sua madeira em cacos grandes. Assim que vejo as asas negras com adornos coloridos e cintilantes tentando, em vão, bater, eu descubro que era um casulo. E eu quebrei o casulo antes do tempo, Zé. A borboleta não conseguiu voar, não conseguiu atingir sua forma mais bela e plena. E casulos nem se quebram, Zé, eles dão apenas o espaço necessário para que a borboleta aconteça, tudo ao seu tempo. Mas no sonho eu nem imaginava que seria um casulo. Eu só conseguia sentir um medo terrível e tentei me proteger, e por conta disso eu matei a borboleta.

Esse sonho me fez acordar com uma angústia danada. Meu coração estava acelerado. Sabe quando a gente é criança e faz uma coisa muito errada e o coração chega a doer de medo? Eu acordei assim... mas percebi que era apenas um sonho, e abracei o Rômulo, e o medo foi embora. Mas a angústia não passava. A borboleta pedindo pra nascer não saía da minha cabeça, Zé. E eu passei o dia todo olhando a natureza com os olhos mais atentos, e tomei cuidado para não interferir em nada. E eu queria muito falar disso com você. Hoje. Eu acho que tenho mesmo de aprender a esperar o tempo certo de voar, Zé. Tem dias que essa ansiedade não me dá paz.

Eu espero que você esteja bem de saúde, meu querido, e que a sua sobriedade sempre prevaleça nesse mundo de gente estranha. Espero também que você não tenha desistido de ser feliz, Zé. Você merece muito. Nós merecemos.

Saudades,

Isabele.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Encontros e Despedidas

É na despedida que o encontro se revela. É no abraço apertado, no olhar molhado, no aperto do coração na hora de dizer tchau que se evidencia a intensidade do encontro. Não falo desses encontros banais que a vida nos impõe cotidianamente; falo do encontro verdadeiro, daqueles em que saímos diferente da maneira que entramos.
Encontrar é a possibilidade de se permitir mudar, ser afetado pelo outro, e também afetar. Esse encontro pode ocorrer entre diversos pares: uma pessoa, um lugar, um livro, uma música, um animal, uma ideologia, e até consigo mesmo. O essencial é a alma regozijar-se da presença, ainda que seja necessário, antes, conhecer a dor.

E quando precisamos nos despedir, ainda que não seja para sempre, é difícil encontrar a linha tênue entre a alegria do encontro e a dor da partida. Aceitar a despedida é ter maturidade para compreender que nada é eterno, que as pessoas se vão, que histórias terminam, que é preciso fechar o livro, deixar partir.

Importante é ter havido encontro.


Tentação.
"(...) O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreendiam. Acompanhou-os com os olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás."

Clarice Licpector  (in A Legião Estrangeira)

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Somos Quem Podemos Ser

Um dia me disseram
Que as nuvens não eram de algodão
Um dia me disseram
Que os ventos às vezes erram a direção
E tudo ficou tão claro
Um intervalo na escuridão
Uma estrela de brilho raro
Um disparo para um coração

A vida imita o vídeo
Garotos inventam um novo inglês
Vivendo num país sedento
Um momento de embriaguez

Somos quem podemos ser
Sonhos que podemos ter

Um dia me disseram
Quem eram os donos da situação
Sem querer eles me deram
As chaves que abrem esta prisão
E tudo ficou tão claro
O que era raro ficou comum
Como um dia depois do outro
Como um dia, um dia comum

A vida imita o vídeo
Garotos inventam um novo inglês
Vivendo num país sedento
Um momento de embriaguez

Somos quem podemos ser
Sonhos que podemos ter
Um dia me disseram
Que as nuvens não eram de algodão
Sem querer eles me deram
As chaves que abrem esta prisão

Quem ocupa o trono tem culpa
Quem oculta o crime também
Quem duvida da vida tem culpa
Quem evita a dúvida também tem

Somos quem podemos ser
Sonhos que podemos ter


Humberto Gessinger
(Engenheiros do Hawaii)

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Auto-sabotagem

É incrível minha capacidade de me boicotar. É praticamente um gol contra, daqueles que o juíz e os colegas de campo não percebem, os créditos são dados para o time adversário, e o autor da façanha fica com cara de paisagem acreditando que vai sair impune. O problema (ou solução?) é que a tecnologia está aí, e nos disponibiliza o replay em câmera lenta a 5000 frames por segundo. Então somos obrigados a assumir o cinismo.

A auto-sabotagem me surge como um recurso para que eu me sinta bem achando que eu fiz o que deveria ser feito. Saio da academia de ginástica com ares de atleta, fingindo pra mim mesma (e pior é que eu acredito!) que fiz todas as séries necessárias, sem dar aquela ajudinha com a coluna pra levantar o maldito pesinho, ou perder as contas (sempre pra menos) das repetições das séries. Compro livros e mais livros achando que vou ficar mais inteligente por isso, e muitos deles não passam da 2ª página, me sinto satisfeita só por vê-los na prateleira. Escondo de mim mesma os assaltos à geladeira. Nunca tomo xarope amargo até o fim, olho pros lados pra ter certeza de que não há testemunhas e jogo no ralo.

É como se existissem dois ''eus", e uma fica enganando a outra. Uma quer chegar ao objetivo, e a outra sabota o caminho. Escondo-me de mim mesma pra fazer aquilo que me envergonha. Fecho os olhos para as minhas bizarrices. Finjo pra mim mesma que não fui eu. A culpa nunca é minha. Faço minha parte, o sistema é que não funciona.

Mas a quem eu quero enganar? Ao fim do jogo eu não tenho como negar. As imagens revelam quem sou, quais foram meus atos. Querendo ou não, estamos sendo vigiados o tempo todo. Depois da auto-sabotagem só resta a culpa e o auto-flagelo, ou então digo para mim que foi apenas um engano, nada aconteceu.

domingo, 1 de agosto de 2010

Se eu quiser falar com Deus

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração















Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar

(Gilberto Gil)